terça-feira, 24 de junho de 2008

Crianças

Crianças

Por Vladimir Nascimento

Criaturas cândidas, com caráter, cordiais.
Cidadãos camaradas, criativos,
corretos, compreensivos, cultuados,
considerados. Considerados?
Cidadãos considerados?

Citarei contradições:

Cidade: comércio clandestino:
crianças cativadas, contratadas,
compradas como concubinas.
Custo: Cédulas? Cruzeiros? Centavos!
Cruel conduta.
Compradores (“consumidores”):
cavalheiro, cientista,
cantor, compositor;
cabo, coronel, capitão;
carpinteiro, camelô, cachaceiro,
caminhoneiro
celibatário, carismático;
conde, chefe, cara, coroa,
celebridade, cidadão comum,
cunhado, conhecido, criadores…
Crápulas, charlatões, covardes,
compulsivos criminosos!
Crime, calúnia, calamidade.
Crianças consideradas cinderelas
contratadas como cafetinas.

Corpo capturado, controlado, chantageado,
consumido, cooptado.
Castidade comercializada,
cotada como custódia.
Conseqüência: casa, casebre,
cativeiro, cárcere.
Crianças confinadas caladamente;
chutadas, chicoteadas,
covardemente castigadas.
Clamam compaixão, concórdia,
choram, cedem…
Criminosos comovem-se?
Cerimônia… crêem.
Crescem contanto
como crianças censuradas,
criminosas, caloteiras, cadelas…
Conclusão: com certeza, caso conhecido;
combinação cruel:
Cova. Cedo. Céu?

Campo: crianças com cor clara,
coradas, crioulos com carapinha…,
compelidas,
ceifam, ceifam, ceifam…
Criadores? Cúmplice. Coagem com cobertura.
Conseguem comida? Catam cacos,
cavam, capinam, colhem cacau,
cultivam cevada, cereais,
compilam carambolas, cerejas…
Contudo, cada caixa com centenas,
centavos conseguidos.
Canavial, construções, carvoarias,
Crianças contristes, cabisbaixas,
caquexiadas,
Corpos com cicatrizes,
corroídos, cansados.
Cilada cruel;
cadáver, cova, cemitério,
Cedo!

Contrariedades: Comodidades:
crianças cortejam
cédulas, celular, computador,
cinema, carros;
casas, castelos;
chão, colchão, confecção;
colégio, caderno, caneta;
convívio com celebridades,
camadas, “classes competentes”;
comidas, colher cheia, cereais;
carrossel, ciranda cirandinha, carnaval.
Crianças capacitadas, com categorias,
com chance, com charme,
crianças cheirosas, conceituadas,
contudo,
comparadas com crianças “comuns”…
Contradição, combinação contrária.

Conclusão: crianças com comodidades
crescem, controlam constituição.
Criam cinco, cinqüenta, cem,
centenas convenções, contudo ciclo continua.

Cada calote, cada cena!
Cada caso, cada coisa…
Crápulas, canalhas, convencidos!
Camuflam, conspiram, contrariam!
Censo? Censura.
Constituição? Cega. Cega?
Crime? Compensa. Compensa?
Ciência? Cúmplice.
Culpa? Comédia!
Candidato? Cumprem? Conversa!

Categorias cômodas crescem,
camadas confinadas curvam-se.
Conseqüência: catástrofe continua.
Crianças consideradas? Comédia!
Crianças controladas,
crianças condenadas,
covardemente censuradas!

Civilização cruel!
Cruel civilização!
Cruel constituição!
Cruel contradição…
Chega!

A cultura como agente propiciador da invisibilidade do incesto

A cultura como agente propiciador da invisibilidade do incesto

Por Vladimir Nascimento


A maior herança que uma nação, tribo ou comunidade pode ter, e que perpassa todas as gerações é o legado cultural. Apesar de perpetuarem outros espólios, a cultura, assim como as crenças e tabus é aprendida e apreendida inexoravelmente, seja como um axioma ou cognitivismo cultural.


A falta de consenso em diferenciar comportamento imitado versus comportamento inato, instintivo, é evidente. Não obstante, apesar deste ser um aspecto importante, não é o foco deste artigo, tampouco discutir a importância da cultura na psique humana e até que ponto ela seria mais importante que o direito constitucional à vida. Mas, sobretudo, expor como as sociedades – contrárias à prática incestuosa – contribuem para o aumento das estatísticas de violência sexual intrafamiliar contra crianças.


O tabu do incesto ainda é uma incógnita na atualidade. Grandes intelectuais como Sigmund Freud e Claude Levi-Strauss procuraram, de alguma forma, esclarecer questões sobre esta análise da proibição da relação sexual intrafamiliar. Entre eles, o consenso é que esta interdição seria um fenômeno sócio-cultural de caráter universal. Para Strauss, o tabu do incesto estaria ligado diretamente a ultrapassagem do instinto às regras sociais. Freud também defende que a proibição está relacionada a aspectos sociais, mas em conjunto com desejos inconscientes que o próprio homem rejeita, deslocando-os para outros objetos e pessoas, que seria a neurose, o que em hipótese alguma descarta a transgressão do tabu, por parte do neurótico (PONTES, 2004).


Em se tratando de um tema tão delicado como o incesto, são imprescindíveis o escrúpulo e à atenção. Seja através da Antropologia, Etnologia, Sociologia ou Psicanálise, a violência sexual intrafamiliar não deve ser abordada como um fenômeno social isolado. Qualquer afirmação que aborde apenas aspectos relacionados ao ato em si é uma explicação errônea, incoerente, incompleta. É imprescindível considerar a história de vida do perpetrador; o vínculo deste com a criança; a intensidade e duração da violência; a percepção da vítima e principalmente, os aspectos culturais.


Não existem normas e valores absolutos para todas as comunidades, portanto, é incorreto julgar ou avaliar moralmente determinadas práticas culturais. Este etnocentrismo deve ser posto de lado, até porque a tendência dos povos é julgar outras etnias e formar juízos segundo os moldes da sua própria cultura – considerada configuração saudável para os indivíduos que a praticam. Evidente que sobrepor explicações que justifiquem uma ação bárbara apenas como aspectos culturais seria uma injustiça, como por exemplo, o estupro de uma filha por seu pai, ou o infanticídio, como é permitido na cultura dos esquimós. Pois, apesar da diversidade dos costumes, nenhuma ação é justificada se ultrapassar a fronteira que separa o etnocentrismo do respeito à vida humana (NASCIMENTO, 2005).


Acontece que na sociedade ocidental, por exemplo, onde o incesto é proibido existem ações e práticas que, se não permitem, acabam facilitando a não-prevenção deste crime. A existência de determinadas crenças, mitos, valores, costumes e práticas educativas presente em nossa cultura findam por desrespeitar os direitos da criança, prejudicando as mesmas em seu desenvolvimento. São padrões culturais que perpassam várias gerações, e que, por sua vez, contribuem para a não garantia plena dos direitos da criança e do adolescente, mesmo depois da implementação do ECA.


O primeiro mito que surge em caso de incesto, quando o infante denuncia, é a incredulidade na palavra da criança, tanto por parte dos familiares, como por outros profissionais envolvidos no caso. Em nossa cultura existe a crença de que as crianças mentem e os adultos dizem a verdade. Não obstante, especialistas garantem que é mais comum a criança negar do que acusar injustamente um membro da família de violência sexual contra ela (FURNISS, 2002). Destarte, a gravidade da violência é expressa, nem tanto pelo ato em si, mas pela indiferença frente à situação.


Na violência sexual intrafamiliar, outro mito que permeia à sociedade é o de que a vítima passa a ser acusada de sedução ou até mesmo de cumplicidade, por não ter denunciado cedo. O código penal brasileiro reza, em seu artigo 224, alínea “a”, que qualquer relação cometida com crianças menores de 14 anos – com seu consentimento ou não – é considerado crime de estupro, ou seja, é estimado como uma violência presumida (GOMES, 2001). Por isso, mesmo que o adulto alegasse uma sedução por parte da criança, seria dever e obrigação deste ter responsabilidade e impor limites.


Esta crença está arraigada a outros costumes, como por exemplo, de que a violência só existe quando deixa marcas. Desta forma, a fim de comprovar o crime, a vítima é encaminhada a passar por invasivos exames de corpo de delito e, por impotência, algumas vezes por incompetência, incapacidade e despreparo dos órgãos competentes (conselhos, delegacias, Ong’s etc), as crianças acabam sendo re-vitimizadas, psíquica e fisicamente. Em nossa sociedade “adultocêntrica”, persiste também a crença de que tudo que o adulto faz é bom, por isso a criança é educada a não duvidar da intenção e gestos dos seus responsáveis. Quando ocorre o incesto, o infante passa a ter em mente que a violência a qual está sendo vítima é algo natural e que ocorre com todas crianças, restringindo e dificultando ainda mais a denúncia. Ela sempre ouviu que não se deve falar com estranhos e que é imprescindível tomar cuidado, pois pessoas estranhas são sinônimas de periculosidade, sendo que seus parentes são os mais confiáveis. No entanto, as estatísticas expõem que, frente à violência sexual, os parentes e as pessoas conhecidas são os maiores criminosos, desde os delitos menos “invasivos” às formas mais aberrantes.

Esta cultura de invisibilidade ainda engloba profissionais, inclusive os mais habilitados para o manejo de situações delicadas como esta. Em casos onde uma criança vítima de violência intrafamiliar passa a demonstrar indícios de violência – profissionais da área psíquica, de saúde ou social, despreparados, por ignorância ou autoproteção ignoram a denúncia implícita (ou explícita) da criança. Desta forma, é dever e obrigação, principalmente dos profissionais psicólogos, deixar de interpretar estes gritos “silenciosos” das vítimas e transcender para um método investigativo, a fim de des(culpa)bilizar o infante e, juntamente com uma equipe multidisciplinar, responsabilizar os devidos envolvidos (NASCIMENTO, 2005).


No Brasil, em todos os estratos sociais, a infância é solitária, desprotegida, desorientada. Urge se valorizar e pôr em prática ações que dêem ênfase à infância. Que esta não seja mais vista, por alguns, como a idade do pecado, como argumentava Santo Agostinho, nem como a idade da privação da razão, como defendia Descartes. Mas, sobretudo, como uma fase do ciclo vital humano que abrange verdadeiros sujeitos de direitos.


Para tal, faz-se necessário mobilizar a sociedade à criação de uma contracultura, ou seja, assegurar no Brasil uma cultura de prevenção à violência sexual infanto-juvenil, principalmente a intrafamiliar, além de criar eficazes mecanismos de apoio, proteção e promoção à saúde biopsicossocial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto
Alegre: Artmed, 2002.


GOMES, Luiz Flávio. Código de processo penal. 3ª ed. São Paulo: RT, 2001.


NASCIMENTO, Vladimir de Souza. “Sou filha ou amante?” – A percepção de meninas
violentadas sexualmente acerca da figura paterna: uma revisão de literatura. Monografia
não-publicada apresentada à UNIFACS. Salvador, 2005.


PONTES, Andréa Mello. O tabu do incesto e os olhares de Freud e Levi-Strauss. Trilhas,
Belém, ano 4, nº 1, p. 7-14, jul. 2004.